Por que o Blockchain não avança como deveria?

Blockchain, a tecnologia que sustenta o bitcoin e outras criptomoedas, há anos é vista por algumas empresas como uma forma de impulsionar projetos de transformação da indústria, entre eles o rastreamento de ativos por meio de cadeias de suprimentos complexas”, de acordo com o artigo do Wall Street Journal, “Blockchain falha em ganhar tração na empresa”.

“Até agora isso não aconteceu.”

As tecnologias Blockchain surgiram pela primeira vez em 2008 como a arquitetura que sustenta o bitcoin, a criptomoeda mais conhecida, mais valiosa e mais amplamente mantida. Ao longo dos anos, o blockchain evoluiu em duas direções principais:

1) Continua a se concentrar em blockchain como plataforma subjacente para bitcoin, bem como para o grande número de criptomoedas, tokens digitais e outros criptoativos que foram criados desde então.

2) Se concentra no blockchain como uma plataforma de dados distribuídos para aplicativos colaborativos envolvendo várias instituições, como cadeias de suprimentos, serviços financeiros e sistemas de saúde.

O Blockchain fez sua primeira aparição nos ciclos de hype do Gartner em 2016. Apesar de estar em um estágio inicial e imaturo, muitos de seus proponentes acreditavam que as plataformas corporativas de blockchain estavam chegando e, portanto, rapidamente atingiram o pico de expectativas. Mas, à medida que a realidade se estabeleceu, as expectativas caíram e, em 2022, as plataformas blockchain atingiram o seu ponto de maior retração.

No mundo das criptos, o bitcoin e a maioria dos outros ativos perderam grande parte de seu valor e várias empresas entraram em colapso, como a FTX e outros vários empreendimentos faliram. we.trade, um financiamento comercial baseado em blockchain, encerrou suas operações em junho depois de ficar sem recursos. Alguns meses depois, a Australian Securities Exchange cancelou seu sistema de compensação baseado em blockchain. E no final de novembro, a TradeLens anunciou que estava descontinuando sua plataforma de comércio global baseada em blockchain. Outros projetos corporativos de blockchain, como o aplicativo de rastreabilidade de alimentos do Walmart, ainda continuam, mas sua aceitação e progresso foram mais lentos do que o previsto.

A IBM e a Maersk lançaram o TradeLens em 2018 junto com outras 94 organizações. Seu objetivo era promover um comércio global mais eficiente e seguro, aproveitando as informações digitais de remessa de contêineres em sua plataforma blockchain compartilhada. A TradeLens foi um dos maiores projetos corporativos de blockchain, cujos parceiros incluíam 15 grandes transportadoras marítimas, 10 bancos multinacionais de financiamento e mais de 270 terminais portuários. De acordo com o comunicado da Maersk, “a plataforma, fundada em uma visão ousada de alcançar a colaboração global, ainda não alcançou a viabilidade necessária para continuar trabalhando e funcionando como um negócio independente”.

Por que o TradeLens e outros projetos corporativos de blockchain falharam, ou estão progredindo mais devagar do que o previsto? O artigo do WSJ cita três possíveis razões: I. a dificuldade de recrutar participantes para colaborar em um objetivo comum; II. o tempo necessário para implantar uma nova tecnologia transformadora complexa; e III. a complexidade intrínseca dos sistemas baseados em blockchain. Deixe-me comentar cada uma dessas possíveis razões.

A dificuldade de recrutar participantes colaboradores

A TradeLens só poderia funcionar com a colaboração de uma série de empresas e nações – que nunca se encaixaram”, disse o artigo. Isso não é de surpreender. Iniciativas complexas, que requerem a estreita colaboração de várias empresas são bastante difíceis de organizar por vários motivos: as empresas participantes são, muitas vezes concorrentes; há também um conjunto de prioridades, exigências por transparência, pois geralmente não confiam umas nas outras, querem direitos de propriedade e participações na governança, compatíveis com seus investimentos e assim por diante. Vou citar dois exemplos concretos de minhas experiências pessoais nas indústrias de TI e Telecom.

Nas primeiras décadas da indústria de TI, no Brasil, dos anos 90, os fornecedores trouxeram para o mercado seus próprios sistemas de rede proprietários, como o NetWare da Novell e o DECnet da Digital. Isso funcionava muito bem, desde que todas as comunicações estivessem dentro da mesma empresa usando a mesma arquitetura, do mesmo fornecedor. Mas tentar passar por empresas e fornecedores distintos era muito complicado. Imagine que enviar um simples e-mail usando um aplicativo de um fornecedor ‘A’, para alguém em uma instituição diferente usando o aplicativo de um fornecedor ‘B’ era bastante complicado.

A internet mudou tudo isso. Durante as décadas de 1970 e 1980, as comunidades acadêmica e de pesquisa desenvolveram redes abertas e protocolos de e-mail, — TCP/IP, SMTP, POP, IMAP, — que permitiu que as pessoas se comunicassem facilmente com qualquer pessoa em qualquer sistema. Alguns anos depois, os padrões abertos da web – HTML, HTTP, URLs – permitiram que um usuário em um PC conectado à internet, acessasse informações em qualquer servidor web em qualquer lugar do mundo. O crescimento explosivo da internet na década de 1990 finalmente forçou as empresas a abraçar a rede aberta, e-mail e padrões da web, e a participar de organizações como IETF e W3C formadas para supervisionar sua evolução.

Uma história semelhante aconteceu com o UNIX. Na década de 1980, o UNIX tornou-se um sistema operacional popular para estações de trabalho, supercomputadores e vários aplicativos, mas diferentes fornecedores desenvolveram sua própria versão do UNIX – AIX da IBM, Solaris da Sun, HP-UX da HP – que diferiam um pouco, de modo que os usuários não podiam facilmente portar aplicativos em todas essas versões diferentes do UNIX. Vários grupos tentaram e falharam em criar um conjunto padrão de interfaces de programas de aplicativos (APIs) UNIX, principalmente porque os fornecedores não confiavam uns nos outros. Finalmente, o Linux surgiu na década de 1990 como um sistema operacional de código aberto semelhante ao UNIX e foi adotado de todo o coração por centros de pesquisas e comunidades da Internet.

Com o tempo, um número crescente de empresas apoiou o Linux, contribuiu para seu desenvolvimento e fundou o Open Source Development Labs (OSDL) em 2000 para supervisionar seu desenvolvimento, que se tornou a Linux Foundation em 2007. Em 2016, a Linux Foundation lançou o Hyperledger projeto baseado no Hyperledger Fabric, uma infraestrutura de blockchain autorizada de código aberto na qual o aplicativo TradeLens foi desenvolvido. As empresas geralmente não adotam novas tecnologias e aplicativos importantes, nem colaboram em seu desenvolvimento até que essas tecnologias tenham provado seu valor comercial no mercado. Isso ainda não aconteceu com blockchains, principalmente porque as tecnologias ainda são muito novas e imaturas para substituir as soluções existentes boas o suficiente.

O tempo necessário para implantar uma nova tecnologia transformadora complexa

As tecnologias de uso geral (GPTs) são motores para o crescimento”, escreveram Erik Brynjolfsson, Daniel Rock e Chad Syverson em “The Productivity J-Curve”, um artigo de pesquisa do NBER de 2020. “Essas são as tecnologias que definem seu tempo e podem mudar radicalmente o ambiente econômico.” Mas realizar seu potencial requer investimentos complementares maciços, como redesenho de processos de negócios, co-invenção de novos produtos e modelos de negócios, requalificação da força de trabalho e um repensar fundamental da própria organização. Além disso, quanto mais transformadoras as tecnologias, mais tempo leva para adotá-las amplamente por empresas e setores em toda a economia.

Por exemplo, após a introdução da energia elétrica no início da década de 1880, as empresas levaram 40 anos para descobrir como reestruturar suas fábricas para aproveitar essa nova fonte de energia, com inovações de fabricação como a linha de montagem e desenvolver novos produtos domésticos elétricos como geladeiras, lava-louças e máquinas de lavar roupas. Da mesma forma, os transistores substituíram os tubos de vácuo em rádios, TVs e computadores na década de 1950. Mas levaria mais algumas décadas para a indústria de semicondutores decolar com o desenvolvimento de um grande número de produtos eletrônicos de consumo, incluindo computadores pessoais e smartphones, e computadores muito poderosos que permitiram o desenvolvimento de aplicativos grandes e complexos, como comércio eletrônico, pesquisa e IA. Blockchain é uma tecnologia de propósito geral, capaz de suportar uma ampla variedade de aplicações e provavelmente se tornará um dos próximos passos importante na evolução contínua da internet. Mas, como a internet, o blockchain é uma tecnologia fundamental, cujo impacto transformador total levará tempo. O processo de adoção de tecnologias fundamentais é gradual, incremental e constante, porque elas devem superar muitos tipos diferentes de barreiras — tecnológicas, organizacionais e políticas.

A complexidade intrínseca do blockchain

Blockchains são baseados em décadas de pesquisas em criptografia, dados distribuídos, teoria dos jogos e outras tecnologias avançadas. Mas por mais avançadas que sejam essas tecnologias, a complexidade real no uso corporativo de blockchains não se deve a suas tecnologias. A complexidade está nos aplicativos colaborativos suportados por plataformas blockchain.

Eu penso nos aplicativos blockchain como uma espécie de ERP 2.0. Os sistemas Enterprise Resource Management (ERP) visam melhorar a eficiência de uma organização, compartilhando informações entre seus vários departamentos e processos. As implementações de ERP são geralmente bastante complexas porque afetam muitas das funções da organização. Imagine agora implementar um sistema ERP, não entre departamentos de uma mesma organização, mas em várias organizações diferentes espalhadas pelo mundo — que geralmente não confiam umas nas outras. Na minha opinião, esta é a principal razão para a complexidade intrínseca do blockchain corporativo, — a natureza dos aplicativos, não a tecnologia.

Marco Iansiti e Karim Lakhani explicaram muito bem essa complexidade e a promessa de blockchains em seu artigo de 2017 da Harvard Business Review, “The Truth about Blockchain”:

Contratos, transações e seus registros estão entre as estruturas definidoras de nossos sistemas econômico, jurídico e político. Eles protegem os ativos e estabelecem limites organizacionais. Estabelecem e verificam identidades e registram eventos. Governam as interações entre nações, organizações, comunidades e indivíduos. Orientam a ação gerencial e social. E, no entanto, essas ferramentas críticas e as burocracias formadas para gerenciá-las não acompanharam a transformação digital da economia. Em um mundo digital, a forma como regulamos e mantemos o controle administrativo precisa mudar.”

Com o blockchain, podemos imaginar um mundo no qual os contratos são incorporados em código digital e armazenados em bancos de dados transparentes e compartilhados, onde são protegidos contra exclusão, adulteração e revisão. Neste mundo, todo acordo, todo processo, toda tarefa e todo pagamento teria um registro e assinatura digital que poderiam ser identificados, validados, armazenados e compartilhados”.

Essa transformação da economia baseada em blockchain levará tempo. Mas, como aconteceu com outras tecnologias transformadoras, tenho esperança de que progrediremos em uma série de etapas incrementais, incluindo etapas iniciais como TradeLens que não funcionaram muito bem e com as quais podemos aprender.

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