Conectados x Desconectados

Na edição de agosto de 1921 da revista americana The Wireless Age, foram dedicadas 11 páginas a descrição de uma luta de boxe que ficou conhecida como “a batalha do século”. Era a disputa do título mundial dos pesos pesados que havia acontecido no mês anterior, na cidade de Jersey, em que o americano Jack Dempsey derrotou por nocaute, no quarto round, o desafiante francês Georges Carpentier.

Este evento arrecadou mais de um milhão de dólares com a venda de ingressos. Mas não foi esse o motivo pelo qual a The Wireless Age deu tanta atenção para o evento. O dia 2 de julho de 1921 também entrou para a história por ter sido a primeira vez que o número de ouvintes de um programa de rádio superou o número de pessoas presentes em um evento de grande porte. Noventa mil pessoas lotaram a arena da cidade de Jersey. Porém, pelas contas da revista, “uma multidão – não menor que 300 mil pessoas – tensas e ansiosas” acompanhou a luta a distância.

Isso foi possível graças, basicamente ao locutor do evento, J. Andrew White ter disponível uma linha telefônica, à mão, no local do evento e falar com um outro locutor, na estação transmissora, e era a voz deste que viajava pelas ondas de rádio.

Graças à Amateur Wireless Association, Dempsey vs. Carpentier, em julho de 1921, forneceu um ponto de inflexão na história da mídia. A revista estava plenamente ciente do poder daquele fato:

Um recorde (…) e o início de uma nova era. Enquanto os olhos do mundo todo aguardavam o lançamento da tradicional palavra impressa
para contar a história – o rádio contou-a pela voz! Instantaneamente, pelos ouvidos de um público ansioso, um evento internacional foi ‘ilustrado’em todos os seus emocionantes detalhes. (…) O apelo à imaginação não tem fronteiras. Previsões para o futuro agora serão o tema de uma especulação prazerosa, estimulante e praticamente infinita.”

Um século depois, pode-se dizer com segurança que mesmo a mais inventiva dessas especulações foi superada. Hoje, mais de 4 bilhões de pessoas têm acesso à internet, e mais de 7 bilhões estão conectadas umas às outras via telefone celular. A audiência de programas ao vivo de notícias e de esportes atinge constantemente a casa de centenas de milhões. Atualmente, mais da metade da população mundial está quase que permanentemente acessível por meio de alguma forma de conexão digital em tempo real. Esses são números para serem observados com espanto. No entanto, depois de pouco mais de duas décadas do presente século começamos a passar por outro momento histórico das comunicações: dessa vez relacionado não com números absolutos, mas com o tempo propriamente dito.

Em 1999, de acordo com uma pesquisa realizada com mais de 2 mil norte americanos entre 8 e 18 anos, conduzida pela Kaiser Family Foundation, os jovens nessa faixa etária usavam algum meio de comunicação por cerca de 6 horas e 20 minutos ao dia.

A pesquisa afirmava que, a vida de crianças e jovens estava próxima da “saturação” – isso significava que os pesquisadores que analisaram os resultados não conseguiam encontrar mais nenhum espaço livre para ser gasto com qualquer tipo de mídia. Parecia que a humanidade estava atingindo um patamar intransponível em termos da quantidade de informação que era possível consumir desde as primeiras horas do dia – uma conclusão fundamentada pelo aumento de apenas 2 minutos, em relação ao primeiro resultado, quando a pesquisa foi repetida com jovens da mesma faixa etária em 2004.

A fundação repetiu a pesquisa mais uma vez, em 2009, e para surpresa de todos descobriu que o tempo total de uso de mídias entre jovens de 8 a 18 anos agora havia aumentado em mais de vinte por cento, para quase 7 horas e 40 minutos diários. Se o uso de dispositivos portáteis fosse levado em conta, a exposição total chegava à marca de 10 horas e 45 minutos por dia.

Esse foi um resultado extremamente impressionante. Considerando que os jovens necessitam de 8 a 9 horas de sono por noite, os números de 2009 elevaram o tempo de uso de mídias para metade das horas em que estão acordados – isso sem incluir qualquer mídia utilizada para trabalhos na escola, em vez de lazer. A televisão ainda estava em primeiro lugar, como ocorreu durante meio século, com 3 horas e 40 minutos por dia. Mas, de longe, a novidade mais importante foi o uso de smartphones para o consumo tanto de mídias tradicionais como novas: para assistir a programas de televisão no ônibus, a caminho da escola, para enviar mensagens de texto e conferir o Facebook enquanto se ouvia música e checava e-mails.

Mais de uma década depois da última pesquisa, o consumo de mídia passou da saturação das horas de lazer a algo muito mais significativo: estamos em uma fase de completa integração à rotinas midiáticas em praticamente todas as nossas atividades.

Conforme concluiu um artigo semelhante, sobre os hábitos de consumo de mídias, publicado em novembro de 2010 pela POLIS de Londres, a maior parte dos jovens que vive no mundo desenvolvido não fica nunca sem acesso ás mídias e esse consumo se dá por principalmente por smartphones e tablets.

Um estoque pessoal e portátil de músicas, vídeos, jogos, aplicativos e serviços de redes sociais está sempre à mão. Os padrões de comportamento estão se transformando em um ritmo jamais visto, nem mesmo com o início das transmissões de rádio na década de 1920 e de televisão na década de 1950. Porém, o desenvolvimento mais importante de todos, a meu ver, está relacionado com um tipo diferente de padrão: não apenas com nossos hábitos, mas com o que consideramos nosso “estado de consciência” padrão.

Hoje, em nossos dias, pela primeira vez, é correto dizer que faz parte da rotina da maior parte das pessoas estar “conectado” a pelo menos uma forma personalizada de mídia. Enquanto que, há um século atrás, uma transmissão ao vivo de rádio era considerada quase um milagre, hoje é comum passar a maior parte do tempo em que estamos acordados conectados ao nosso próprio “link ao vivo” com o mundo. A questão mais óbvia que se segue a essa conclusão é de natureza pragmática:

O que vem depois disso?

Em curto prazo, a resposta mais óbvia seria mais uso de mídia, por mais tempo e em mais lugares. Entretanto, se quisermos prosperar em longo prazo, nesse novo mundo conectado, acredito que precisamos começar a pensar de outra forma sobre os diferentes tipos de tempo em nossa vida. Os momentos em que não estamos utilizando algum tipo de mídia digital não apenas deixaram de ser nosso estado padrão; eles são também algo que não conseguimos vivenciar sem que explicitamente nos planejemos para tal.

Se quisermos aproveitar o máximo tanto do mundo à nossa volta quanto uns dos outros, precisamos compreender que agora existem fundamentalmente duas formas distintas de se fazer parte deste mundo: os momentos em que estamos conectados e os momentos em que estamos desconectados.

Simplesmente depreciar um dos dois não serve para nada, pois cada um representa um conjunto diferente de possibilidades para o pensamento e a ação. Em vez disso, devemos aprender a nos perguntar – e ensinar nossos filhos a se perguntarem – quais aspectos de uma tarefa, e do viver, são melhor servidos por cada um. E precisamos encontrar formas de efetivamente consolidar ambos em nosso estilo de vida.

As maiores vantagens de estamos conectados podem ser facilmente enumeradas. Conectados, temos velocidade; podemos pesquisar e aplicar a maior parte da sabedoria reunida pela humanidade – bem como fofocas e palpites – em questão de minutos; estamos a apenas alguns segundos de distância do contato com milhares de pessoas. Possuímos poderes divinos e estamos nos especializando cada vez mais no uso deles. Pense no que pode ser obtido em apenas alguns minutos de navegação pela Wikipédia, ou numa busca no banco de livros de copy right livre digitalizados pelo Google. Essa pesquisa possui velocidade e amplitude muito além dos sonhos mais ousados que qualquer acadêmico teria, apenas meio século atrás, e agora ela não apenas existe, como também está ao alcance de praticamente qualquer cidadão moderno. Já estamos tão distantes da época da alfabetização não digital, quanto os leitores estavam da era pré-Gutenberg, quando possuir e ler livros era privilégio de uma elite.

Já, quando falamos de estar desconectados dessas mídias em tempo real, nossa originalidade e nosso rigor podem entrar em cena de uma forma diferente e bastante antiga: nossa capacidade de delegar, de tomar decisões, de agir por iniciativa própria; de pensar sem medo de copiar outra pessoa ou a sensação constante de ter uma plateia nos assistindo o tempo todo. Estamos então, sozinhos com nós mesmos, ou realmente presentes uns diante dos outros, de forma completamente distinta de qualquer momento em que estejamos conectados. Isso é igualmente verdade tanto no campo pessoal quanto no profissional.

Em fevereiro de 2011, em uma palestra na London School of Economics, a escritora Lionel Shriver, falou sobre o impacto das novas tecnologias nas formas de escrever e de pensar. Ela descreveu a experiência de escrever

com uma multidão dentro do seu estúdio

– ou seja, escrever diante das reações do público em tempo real, instantânea e amplamente visíveis – e a pressão que isso gera tanto no sentido de censurar a si mesmo quanto de tentar agradar aos outros.

“Descobri que eu precisava me proteger das opiniões alheias”,

ela comentou e ilustrou como era escrever uma coluna para um jornal com seu marido lendo o que ela estava escrevendo:

“Você não pode escrever isso”,

ele comentou em determinado momento,

“veja só como reagiram a isso pela internet da outra vez”.

É praticamente impossível dissociar esse desejo de protegermos a nós mesmos da ideia de saber, em primeiro lugar, o que é este “eu” que queremos proteger…

Os avanços que as tecnologias deste século já estão começando a promover nos pensamentos e nas ações coletivas são imensuráveis. No entanto, mais do que nunca, está claro que todos nós precisamos de momentos em nossa vida para ter nossas próprias ideias, sem distração, interrupção ou respostas imediatas, mesmo das pessoas com as quais mais nos importamos. Também está claro que, se não tivermos cuidado em administrar esse tempo, a tecnologia poderá tirá-lo de nós. Em uma era de constantes conexões em tempo real, a questão central de nosso exame de consciência está se deslocando de “Quem é você?” para “O que você está fazendo?”. Por mais que muitos de nós estejamos sedentos por estar conectados, se quisermos prosperar precisamos manter alguma parte de nós separada dessa constante vontade de exposição. Precisamos de outros tempos verbais além do presente – de outras qualidades de tempo – em nossa vida. Essa é uma questão que foi brilhantemente colocada pelo cientista da computação Jaron Lanier durante uma palestra na conferência na Southwest, em março de 2010, na qual ele pediu que o público não fizesse mais nada, além de ouvir, enquanto ele falava.

“O principal motivo para que peço que vocês parem de fazer tantas coisas ao mesmo tempo não é para que eu me sinta mais respeitado, mas para fazer vocês existirem. Se vocês escutarem primeiro, e escreverem somente mais tarde, o que for escrito terá tido tempo para passar pelo filtro dos seus cérebros, e vocês estarão presentes no que está sendo dito agora. É isso que faz vocês existirem” – argumentou Lanier.

Com este apelo, Lanier conseguiu, por cerca de uma hora e meia, captar a atenção das pessoas, promovendo a sua “desconexão do mundo online”. Isso deixa claro que, precisamos reservar momentos para estar desconectados, e isso não requer uma viagem para uma cabana afastada no topo de uma montanha, nem anunciar um longo afastamento da leitura de e-mails – apesar de significar que tirar férias dos dispositivos eletrônicos se tornou uma forma popular de indulgência para aqueles que podem arcar com as consequências. Pelo contrário, os momentos desconectados têm muito a acrescentar como parte de nossa rotina diária: a decisão de não enviar e-mails numa manhã, de desligar o telefone celular durante um encontro ou uma refeição, de dedicar alguns dias ou algumas horas para uma reflexão, sem aparelhos eletrônicos, ou simplesmente a decisão de encontrar uma pessoa ao vivo, em vez de trocar vinte e-mails com ela. Afirmo que não é fácil, mas estou tentando dedicar partes do meu dia à produtividade sem conexão: momentos em que todos os meus aparelhos digitais estão desligados ou fora do meu alcance imediato. Meus encontros pessoais tem se tornado muito mais interessantes e significativos quando estou desconectado.

No início dos anos 2000, as conferências de tecnologia pareciam reunir os participantes mais visionários, ostentando seus telefones celulares e laptops de última geração. Hoje, apesar de nenhum evento de tecnologia estar completo, sem uma transmissão paralela em uma rede social, também está se tornando comum aos palestrantes e mediadores, solicitarem algo simples que remonta ao passado:

“escutem primeiro, escrevam depois”.

Ser conservador, em algum aspecto midiático, é a palavra de ordem. Esses novos hábitos e sugestões não constituem um manifesto propriamente dito; mas são o começo de uma atitude que coloca a tecnologia digital em seu devido lugar. Definir um papel específico para ela em nossa vida, em vez de permitir que sua presença se torne uma condição inevitável e ininterrupta. Devido ao poder de comunicação avassalador das novas mídias, o tempo é mais do que nunca nosso bem mais precioso. Todas as tecnologias do mundo não podem criar uma partícula a mais dele – e sua experiência está ameaçada de se tornar o que o teórico político Fredric Jameson chamou de “presente perpétuo”, no qual a sociedade perde “a capacidade de reter o próprio passado”.

Para algumas pessoas, a saturação do presente é intensamente acompanhada de estresse, ansiedade e da sensação de perda do controle. Acredito que não perdemos nossa capacidade tanto de resistir quanto de nos adaptar a essas mudanças na forma como vivenciamos o tempo, seja como sociedade ou como indivíduos; acima de tudo, no entanto, todos os esforços de nossa parte devem começar por reconhecer que, sem a habilidade de dizer “não” quanto “sim” à tecnologia, corremos o risco de transformar esses milagres em armadilhas.

O tempo é a única coisa sobre a qual toda a tecnologia do mundo não pode invocar nem uma partícula a mais.

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