A autoridade do motor de busca

Em 1998, dois estudantes da Universidade de Stanford publicaram um artigo intitulado “Anatomia de um sistema de busca on-line hipertextual em larga escala”. Por trás desse resumo, está o que pode ser considerada uma das ideias mais importantes da era digital: como trazer à tona um novo princípio de discernimento, em meio ao universo assustadoramente crescente de depósitos virtuais de informação.

Como, se perguntavam os autores, seria possível aliar uma mídia “desregulamentada”, onde “qualquer um pode publicar o que quiser”, a resultados de busca genuinamente satisfatórios, dizendo aos usuários não apenas onde encontrar a informação, mas indicando também quais delas têm maiores chances de ser precisas e úteis?

A resposta que eles encontraram – e a crença que tinham de que esta resposta não apenas existia, mas podia ser dimensionada para englobar bilhões de documentos publicados – contribuiria profundamente para mudar o mundo ao longo das décadas seguintes.

Os autores do estudo eram Sergei Brin e Larry Page, e o que eles propuseram foi um produto batizado de Google – uma brincadeira com o termo matemático “googol”, que representa o número um seguido por uma centena de zeros.

Ferramentas de busca na internet, existiam desde o início dos anos 1990. No entanto, Brin e Page perceberam que poucas pesquisas haviam sido feitas no sentido de melhorar a qualidade dos resultados que essas ferramentas ofereciam. A novidade mais significativa que eles apresentaram surgiu da percepção de que a própria metodologia acadêmica de pesquisa oferecia uma solução para o problema.

No meio acadêmico, sabe-se há muito tempo que o número de vezes que determinado trabalho é citado por outros, fornece um retrato de sua credibilidade em uma área específica. Um trabalho de pesquisa citado posteriormente em centenas de outros trabalhos pode ser considerado, de forma evidente, detentor de uma credibilidade maior do que um trabalho que jamais foi citado.

Traçando um paralelo, Brin e Page concluíram que o número de vezes que o link de uma página da internet era repetido em outras páginas, fornecia uma percepção útil de sua importância ou qualidade – e, de certa forma, era um tipo de avaliação que poderia ser conduzida de maneira automatizada por um algoritmo suficientemente sofisticado.

O algoritmo esboçado no artigo foi batizado de “PageRank” – e existe até hoje, no núcleo, do que talvez tenha se tornado o serviço digital mais influente do mundo. O PageRank cresceu de forma expressiva, em termos de sofisticação, desde seus primeiros dias, e sua fórmula exata é um segredo corporativo muito bem guardado. O princípio que o orienta, no entanto, permanece o mesmo. Uma observação extremamente precisa em larga escala fornece a chave da mais valiosa das qualidades – a qualidade, propriamente dita.

Em vez de exigir que seus criadores avaliem a qualidade dos recursos disponíveis na rede, um algoritmo como o PageRank observa automaticamente como todo o mundo está usando e construindo a internet. As variáveis-chave incluem o número de links que apontam para uma página, o número de visitantes que ela recebe, a frequência com que é atualizada e o tipo de conteúdo que oferece. Acima de tudo isso, estão dispostos sofisticados índices que incluem o tipo de visitantes que a página recebe, por quanto tempo e quão profundamente eles interagem nela, a relação de autoridade de todos os outros sites conectados a ela e se existe algum tipo de comportamento suspeito, que indique que alguém está tentando melhorar seu desempenho de modo artificial.

No mundo digital, o que significa o melhor?

A história da análise de estatísticas cada vez mais avançadas desenvolvidas pelo Google e por outras ferramentas de pesquisa e a corrida armamentista contra aqueles que tentam fraudar esses resultados seriam contos fascinantes por si só. Ainda mais significativa, no entanto, é a mudança de cultura que eles ilustram. No período de pouco mais de duas décadas, inovações no processamento de conjuntos de dados, cada vez maiores, alteraram nossa percepção quanto ao que significa autoridade, talvez de forma mais extensa do que em qualquer outro período na história – e com isso mexeram também com a maioria de nossas ideias sobre valor cultural e intelectual.

A palavra “autoridade” apareceu pela primeira vez na língua inglesa no início do século XIII, derivada do francês arcaico, com conotações especificamente literárias. Um “auctorite”, como se dizia na época, era um texto no qual se podia confiar – e que, portanto, podia ser utilizado como base para argumentos culturais e teológicos. Textos desse tipo, por excelência, vinham da Bíblia, seguida pelos mais venerados autores clássicos e religiosos. Esses textos continham sua própria garantia de veracidade, e a forma mais elevada de aplicação acadêmica envolvia esmiuçar seus significados e colocá-los em prática. O respeito à autoridade não era simplesmente uma questão de hábito; era a base de todo um sistema político e intelectual. Com o tempo, a palavra “autoridade” passou a ser usada também para se referir ao indivíduo que se dedica à leitura e pode ser considerado um especialista em determinado assunto ou a alguém que, devido à posição que ocupava – um lorde, um rei, etc – merecia a obediência dos demais. Em ambos os casos, uma espécie de fé está embutida no ato de deferência: acima de tudo, a fé na ideia de que aquela deferência era um bem social e cultural.

O Iluminismo, a democracia e a cultura de massa dissolveram, há muito tempo, esse comportamento. Apesar disso, um pequeno grau de fé na especialidade permanece como parte integrante de nossa vida cultural, com as figuras espelhadas do crítico e do criador ocupando seu centro. Do lado de fora do reino empírico do método científico (que tem sido radicalmente transformado pelo poder de enormes conjuntos de dados), há muito tempo toleramos – e até mesmo requisitamos – pessoas cuja função é nos aconselhar sobre o que devemos ou não devemos gostar; que almejam ao mesmo tempo representar e educar o gosto do público, batendo de frente com o cânone de um determinado campo do conhecimento. Mesmo a mais refinada das críticas foi sempre apenas mais um fator diante de muitos outros. Há muito tempo sabemos quais livros são os mais vendidos, quais filmes tiveram a maior audiência, quais obras de arte atingiram os preços mais altos e quem conseguiu o maior número de votos. Entretanto, o que não tínhamos até pouco mais de duas década atrás era um empirismo de escala e de aparência radicalmente novas, adaptadas à era digital. Hoje, temos na ponta dos dedos acesso instantâneo a um tipo de concurso popular de autoridade, muito mais sutil e onipresente do que qualquer lista de mais vendidos: aquele adaptado a praticamente qualquer forma de pesquisa que pode ser feita, formas essas em constante mutação. Não existe praticamente nenhuma palavra ou frase, de qualquer língua conhecida, para a qual uma ferramenta de busca moderna não exiba e classifique pelo menos um resultado.

Graças a serviços como a Amazon, não existe praticamente nenhum produto – seja cultural ou comercial – que não apareça com seus números de vendas convenientemente classificados, desde um até muitos milhões, e com as avaliações e opiniões de pessoas que já o compraram, disponíveis a apenas um clique. Até hoje nos valemos de opiniões críticas e do embate entre elas. Porém, quando todos nos tornamos capazes não só de ter nossas próprias opiniões, como também de publicá-las abertamente, meras proclamações individuais de conhecimento sobre um assunto começam a parecer frágeis como porcelana. Pense no que significa, exatamente, procurar alguma coisa na internet. É muito fácil aceitar que informações como a altura de uma montanha ou a população de um país possuem um valor empírico. Contudo, questões como

Picasso foi o maior artista do século XX?

estão passando a ser vistas sob uma
ótica parcialmente empírica com uma frequência cada vez maior. Basta perguntar à internet, e as respostas do mundo inteiro serão depositadas na sua frente, classificadas por relevância. A informação agregada está na ponta dos dedos: não na forma de uma resposta simples, mas sim uma resposta definitiva à pergunta implícita

quais são todas as coisas que já foram ditas sobre Picasso ser o maior artista do século XX – e quais delas possuem maior autoridade?”.

Esta é exatamente o tipo de avaliação que passamos a solicitar aos críticos; e não apenas a eles, mas aos detentores de todo tipo de conhecimento, de editores a jornalistas, passando por educadores, cientistas e formadores de opinião. Durante séculos, era impossível que qualquer indivíduo possuísse, consumisse ou pesquisasse de forma significativa sequer uma fração do conhecimento do mundo. Portanto, sempre tivemos que recorrer a outros para nos aconselhar e selecionar materiais – e para determinar o que merece ser alocado em posição de destaque nos campos de registro permanentes. Hoje, o processo de seleção não mais acontece antes que algo seja enviado ao mundo. Ao contrário, tornou-se uma operação constante e terceirizada. Praticamente toda e qualquer coisa está sob os olhares do mundo inteiro e é peneirada não pelos formadores de opinião, mas pelo gosto do público. Sem dúvida, este é o espírito central da maior parte dos modelos digitais de negócio.

Em vez de selecionar primeiro e publicar depois, publica-se primeiro e posteriormente reage-se às escolhas feitas pelo próprio público – enfatizando incessantemente as coisas que conseguem arrebatar alguma audiência e dedicando poucos esforços às demais. Se isso representa uma crise de valores e de autoridade, é também, sob diversas formas, uma crise extraordinariamente benéfica: a penetração em fortalezas antes assustadoras. Existem, no entanto, duas áreas que merecem atenção especial daqueles que buscam mais do que simplesmente navegar pelos novos rumos da cultura: a intelectual e a econômica.

– No campo intelectual, a preocupação é com o achatamento: o desaparecimento da noção de excelência, em meio a uma cápsula de amadorismo e de autopromoção. Escritores com Andrew Keen argumentam que – como deixa claro o subtítulo de seu livro O culto do
amador:

como blogs, Facebook, YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores”,

sendo cultura neste caso algo divulgado e protegido por competentes detentores, trabalhando em harmonia com intelectuais e artistas. Falando sobre temas que vão desde a publicação de livros e revistas até música, cinema e discursos políticos, Keen defende a ideia de que a difusão das tecnologias digitais está corroendo a capacidade do excepcional e do significativo de provocarem impacto público ou tornarem-se tema de discussão. Em vez disso, transitamos à vontade da mesma forma tanto pelo banal quanto pelo profundo – permanecendo mais tempo naquele que for mais fácil de digerir.

O argumento de Keen é uma nova versão de antigas preocupações quanto à democratização, em sentido amplo. Ao substituir o filtro do especialista pela escolha da massa, ele diz, a internet deu poder à turba humana: sufocando vozes discordantes ou excepcionais e deslizando sobre uma maioria passiva, com argumentos de fácil digestão e recorrendo à cultura popular. Acompanhado dessa crítica cultural vem o argumento econômico, que é assustadoramente familiar para qualquer um que teve contato com alguma empresa de mídia tradicional na última década – talvez mais recente e poderosamente articulado no livro do escritor Robert Levine, Free Ride [Livre acesso]. Com um subtítulo esclarecedor

– “Como os parasitas digitais estão destruindo os negócios culturais, e como os negócios culturais podem reagir”–,

o livro se debruça sobre a estrutura das “indústrias culturais” modernas e os danos causados aos seus modelos de negócios pelas tecnologias digitais.

As empresas de mídia tradicionais não estão em apuros porque não estão dando o que seus clientes desejam, elas estão em apuros porque não conseguem receber dinheiro por isso”.

Pode ser difícil questionar a abordagem digital de conceitos como “aberto” e “gratuito”, comenta Levine,

mas o que eles significam, na prática, é o privilégio da infraestrutura, ao custo de tirar dos criadores qualquer possibilidade de controle sobre o que fazem – muito menos de sobreviver a partir disso”.

Poderíamos nos ater a minúcias e discutir as estatísticas detalhadas do colapso da mídia tradicional. Contudo, poucas pessoas discordariam do fato de que a emergência das mídias digitais provocou danos imensos tanto a muitos modelos de negócios já existentes quanto a alguns pressupostos culturais.

A verdadeira questão em jogo não é exatamente o que está entrando em cena, mas a relevância disso. É nesse ponto que a tese de Levine se encaixa perfeitamente à de Keen. Do ponto de vista dos dois, a tecnologia digital transferiu tanto a influência social quanto econômica daqueles empenhados em conceber obras culturais e intelectuais para aqueles que detêm a infraestrutura pela qual essas mídias e esses conceitos fluem incessantemente. Da mesma forma que a autoridade na internet tornou-se incrivelmente apartada do conhecimento específico, parece que a produção cultural está sendo apartada do talento. Esta é uma conclusão que soa profundamente perturbadora a qualquer um que se importe mais com qualidade do que com quantidade – e que aponta para um dos paradoxos mais embaraçosos do mundo digital: os caminhos pelos quais a diversidade e a abertura ajudaram a aumentar, em vez de reduzir, a influência de um número reduzido de agentes. Se antes o número de objetos competindo pela atenção do público estava na casa de milhares, agora ultrapassa os milhões.

O ambiente digital é rico em novas oportunidades para qualquer um que ocupe um nicho suficientemente bem-definido: a “cauda longa” dos interesses das minorias. Entretanto, talvez o impacto mais notável dessa mudança de escala não tenha sido a diversidade, mas o crescimento de uma minoria cada vez mais influente que ocupa o topo. Da mesma forma que empresas como a Amazon, o eBay, o AliExpress puderam, por meio da internet, conquistar um domínio global praticamente inimaginável na era prédigital, a guerra de culturas e ideias é mais do que nunca dominada pelos poucos que conseguiram arrebatar com êxito a atenção da massa.

Existe algo extremamente darwiniano nesse tipo de competição. Veja o caso
dos livros, por exemplo. Se você tem um livro físico em mãos, você tem um objeto que tem uma única finalidade: um objeto projetado exclusivamente para exibir palavras a seus leitores. Se, no entanto, você estiver lendo o mesmo livro, só que na versão digital, em seu computador, ele está ala, disponível a um programa de computador que combina pulsos elétricos para torna-lo visível e possível a leitura. As palavras que aparecem na tela do seu dispositivo notebook, tablet ou smartphone, então elas estarão ocupando o mesmo espaço físico não apenas que todos os outros livros eletrônicos em sua biblioteca, mas também o mesmo espaço que cada
música, filme, notícias, blogs e jogos você usa.

Faz parte da natureza da era digital que essas coisas cheguem a nós de forma cada vez mais paralela ao meio tradicional. É uma força desenhada a partir da nova autoridade, baseada na popularidade. Ao que parece, apenas os fortes sobrevivem.

Mas, Se o nosso comportamento digital se resumisse a isso, então o mundo de
hoje seria sem dúvida assustador para aqueles que esperam fazer mais do que
simplesmente ser levados pela corrente. De qualquer forma, acredito que argumentos como os de Keen e de Levine devem ser interpretados mais como alertas do que como fatos inexoráveis – e que, enquanto muitos modelos tradicionais de negócio podem ser arrasados, nossa percepção consolidada do que significa excelência, espírito crítico e lampejo de criatividade não irá desmoronar tão facilmente.

Algoritmos são capazes de quantificar o comportamento humano em uma
escala sobre-humana. Aí está a fonte de sua utilidade e seu poder. Porém, esse
distanciamento da dimensão humana é também um de seus maiores defeitos – e um dos principais motivos pelo qual, desde a criação do Facebook, em 2004, e do Twitter, em 2006, os dois serviços somados conseguiram reunir mais de 3
bilhões de usuários.

As críticas de Andrew Keen à cultura digital de forma geral, e de seu potencial para a condescendência, a apatia e o sufocamento da verdade e da
excelência, são alertas aos quais devemos prestar atenção, sem dúvida. Mas, classificá-los como o real estado das coisas me parece, ao mesmo tempo, uma perspectiva pessimista e passiva demais – e uma leitura equivocada do potencial individual que continua a existir mesmo durante as maiores aglomerações virtuais.

Quando se trata de autoridade, e da noção de excelência definida pela
observação crítica, mais do que por análises estatísticas, não podemos ajustar o relógio de volta a uma era pré-digital de formadores de opinião vigiando – e moldando – o gosto popular. Entretanto, somos cada vez mais capazes de olhar adiante e espalhar esse discernimento para além dos monólitos das ferramentas
de busca e da generalização; de compartilhar não apenas bobagens, mas evidências de que outros valores, além da euforia da massa, podem fazer sentido não apenas para uma maioria, mas também para uma minoria.

Para dar um exemplo, foi inaugurada em 2011 uma nova ferramenta chamada Unbound Books, que oferece uma plataforma para que escritores lancem suas ideias diretamente ao público leitor. Bastante parecido com o modelo de garantias do século XVIII, de assinaturas prévias à publicação, se os autores do Unbound Books conseguirem convencer um determinado número de leitores a contribuir com uma quantia para o projeto, eles podem continuar a escrever e, por fim, concluir o livro – editado cuidadosamente pela Unbound Books e enviado diretamente para seus leitores. É um exemplo modesto, mas, ainda assim, representa um voto de confiança na capacidade de que o público digital seja algo mais do que uma turba.

Nas palavras de Noam Chomsky, um admirador de longa data do modelo Unbound, “a significância pode ser bastante relevante” – principalmente se essas estratégias representarem a forma dos negócios que estão por surgir, e de modelos de negócios em que a lucratividade não for inimiga da qualidade. Em todos esses episódios de investimento em cultura e compartilhamento, as virtudes essenciais são confiança e respeito: os pilares de uma autoridade conquistada em uma época de igualdade. Mais de quatrocentos anos atrás, o Hotspur de Shakespeare já conhecia o valor da reputação, em uma era em que a palavra de um homem era a garantia do seu caráter. Ao longo dos séculos seguintes, escritores ousados ajudaram a construir culturas literárias de alta e de baixa qualidade da mesma forma, graças a um assíduo cortejo ao público.

Hoje, estamos repassando essa lição. O mundo está cheio de especialistas como nunca esteve antes. Mas tanto eles quanto seu público foram recentemente postos em igualdade de condições no desafio de promover a excelência propriamente dita: dependem da confiança um no outro e não podem confiar em qualquer noção de autoridade certificada por uma instituição ou um cargo mais do que naquela baseada no conhecimento profundo do campo em questão. Econômica e socialmente, é uma época de dificuldades para quem pretende se dedicar à cultura da forma como ela foi concebida. Entretanto, precisamos mais do que nunca ser capazes de distinguir – e aprender – os truques que nos permitirão fazer isso de forma conjunta.

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