O debate pelo digital

Argumentar sobre a tecnologia e sobre tudo que está ligado a ela, as percepções, os valores culturais, políticos e éticos implícitos nos ajuda a direcionar o olhar para a natureza de nossas experiências, mais do que para os bits do software e os componentes eletrônicos do hardware. Devemos aproveitar essas experiências da melhor forma possível – dando espaço a ela em nossa vida, mas também controle. Isso significa encontrar um equilíbrio entre nossos hábitos e açōes – e acreditar que é possível estabelecer diferentes formas de ser e de pensar, em resposta à pressão por estarmos constantemente conectados.

Devemos, também, procurar entender um pouco da história das ferramentas e dos serviços digitais que utilizamos e olhá-los de maneira crítica, da mesma forma como olhamos outras criações humanas. Precisamos aprender não apenas a compartilhar, mas a compartilhar bem – e a fazer parte de comunidades digitais de forma íntegra,
que estimule os outros a também ser íntegros. E devemos nos esforçar para encontrar formas para sermos nós mesmos; para nos valermos das riquezas culturais tanto do presente quanto do passado, e para fugir da pressão exercida pelo senso comum e pelas reações coletivas.

As ferramentas digitais que usamos, fazem com que as coisas pareçam fáceis e livres de consequências. Somos mais livres do que nunca para usar e abusar de outros, ou pelo menos de suas sombras digitais; para espalhar preconceitos e mentiras; para agirmos como autômatos em todos os campos. Esse tipo de liberdade possui seus encantos; apesar disso, não é o único futuro possível que está sendo construído na internet, ou incorporado à arquitetura fundamental de uma era digital. Para cada problema, para cada abuso, o mundo possui um sistema inédito de compartilhamento de informações e de ações coletivas, aberto e igualitário. E ainda não houve país nem organização capaz de controlá-la, da mesma forma que nenhum serviço ou tendência – não importa quão poderosos sejam – nada ainda foi capaz de colonizar integralmente nossas experiências digitais.

Preservar e debater o futuro da vida digital é tarefa para todos nós, principalmente para aqueles que cobram novas formas de relacionamento entre governos, cidadãos, corporações e associações. As questões em jogo são imensas e estão abertas. E, em alguns lugares, o número dessas questões já é espantosamente grande. Apesar disso, a maior parte das boas oportunidades está apenas começando a surgir. Embora possam servir aos desejos e propósitos de grupos privilegiados, as tecnologias digitais também têm se mostrado um extraordinário mecanismo de
mudança para aqueles menos favorecidos: a oportunidade de participar da comunidade de um país, das trocas comerciais e dos enormes reinos da cultura, da inovação e das ideias, pela primeira vez.

Compreender e regulamentar esse terreno é um desafio comparável aos maiores já empreendidos na história humana; um em que bilhões de pessoas estão envolvidos e, cada vez mais, integrados. Nessa questão, como em quase tudo, nossos maiores problemas e as respostas aos problemas habitam o mesmo local: as comunidades virtuais, repletas de experiências e orientações. Nesse contexto, nossas identidades digitais podem ser extremamente vulneráveis, pois estamos sempre a um clique de distância de algo ou alguém – mas se soubermos o que procurar e o que pedir, temos muitas chances de sermos bem sucedidos neste novo mundo.

Por fim, existe a questão relacionada à nossa própria natureza – e aonde
nossa inédita capacidade para autosatisfação e distração pode nos levar. A tecnologia pode ser uma fonte de prazer e um caminho em direção à ação no mundo, mas também possui o potencial para desequilibrar a vida dos indivíduos e das sociedades em torno dela. Para fazer parte desse mundo de modo produtivo, precisamos distinguir entre liberdade digital, e os desafios normalmente incipientes que a vida nos lança. Um não pode ser substituído pelo outro, nem nos ensinar a lidar com ele de forma completa. Entretanto, acredito que podemos aprender bastante sobre como domesticar algumas áreas de nosso mundo, e a nos conectarmos aos cidadãos de hoje e do futuro.

Todos esses argumentos e crenças estão calcados em uma perspectiva
humanista – da forma como acredito que todas as questões concernentes a como prosperar devem estar. Somos a única medida de nosso próprio sucesso, e essa medida não pode ser estabelecida de modo definitivo. Há mais de dois mil anos, Aristóteles usou o termo eudaimonia para descrever a prosperidade e o engrandecimento humanos. Diferentemente de sucesso material ou prazer físico, eudaimonia significa viver no sentido mais humanamente possível. Do ponto de vista etimológico, é composta pela combinação das palavras “bom” e “espírito guardião”, e implica um estado semelhante a ser observado por uma entidade divina. Para determinar a natureza da eudaimonia, Aristóteles recorreu a outro conceito, relacionado: areté, que significa virtude ou excelência. Ser o melhor ser humano possível significava atingir a excelência nas formas mais nobres de realização humana. E estas, segundo Aristóteles, eram os campos da virtude e da razão: faculdades exclusivas dos seres humanos, entre todos os seres vivos. Uma vida de contemplação virtuosa, hoje, pode estar longe de parecer uma resposta satisfatória – ou viável – para a maioria das pessoas, no que tange à questão da prosperidade. Contudo, parece óbvio, ao olharmos para a situação atual e futura da tecnologia, que nossas realizações e potenciais mais notáveis ainda residam no campo mental e que qualquer forma de excelência esteja intimamente ligada tanto à nossa razão quanto à nossa virtude.

Afirmar que somos a única medida de nosso próprio sucesso pode ser posto
de outra forma: que somos a única medida do sucesso uns dos outros. Assim como palavras, nossas identidades possuem pouco significado fora de contexto. Nós nos inventamos e reinventamos constantemente. Hoje em dia, esse processo significa representar um personagem completamente novo em meio à coletividade mutante do mundo digital. A razão – um dos atributos que Aristóteles afirmou ser exclusivo da humanidade – é hoje propriedade também de nossas ferramentas: máquinas cada vez mais complexas, construídas por nós, e que estão ajudando a nos reconstruir. Entretanto, esse processo não precisa nos diminuir. Pelo contrário, devemos tentar ir cada vez mais fundo no questionamento sobre o que nos faz humanos, em última instância, e o que nos une uns aos outros. Como o escritor norte-americano Brian Christian – que se baseia fortemente em Aristóteles – escreveu em seu livro The Most Human Human [O humano mais humano], publicado em 2011,

se existe uma coisa pela qual a
humanidade é culpada, há bastante tempo – desde a Antiguidade, pelo menos –, é por uma espécie de altivez, uma espécie de superioridade”.

Essa superioridade está presente, acima de tudo, no campo intelectual: a percepção da singularidade de nossa mente e de seu indiscutível status privilegiado no universo. Hoje, somos desafiados de forma sem precedentes. Somos desafiados pela lógica instantânea e pelas capacidades infinitas de nossas máquinas; pela presença digital de muitos bilhões de seres humanos; por bilhões de vezes essa quantidade de dados; e pelo que isso provoca em nosso senso de altivez e de autoridade. Ao mesmo tempo, estamos diante também de oportunidades inéditas, tanto para a ação quanto para a reflexão. Lições duradouras de como viver uma vida equilibrada, e sem nenhum iPad à vista. Prosperar significa enfrentar esses desafios. Será que estamos prontos? Nem todos, e não o tempo todo. Hoje, em uma era de conexões e interconexões que se espalham de modo inédito, tanto as recompensas quanto o preço pelas derrotas são mais altos do que jamais foram. Entretanto, acima de tudo, é preciso começar – ligar, carregar, sintonizar – e descobrir, juntos, o que podemos nos tornar.

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