A web e o pior de nós mesmos

“A pornografia é a forma mais política de ficção, pois trata do modo como usamos e exploramos uns aos outros, da maneira mais impiedosa”.

Escrito por J. G. Ballard no prefácio de seu romance Crash, de 1973.

A pornografia tornou-se óbvia no uso da tecnologia, nas últimas décadas. Nenhuma descrição da vida, em uma era tecnológica, estaria completa sem levar em conta a sexualidade; e o ponto de partida dessa “lógica pervertida” é a quantidade extraordinária de material que pode ser encontrada na internet hoje em dia.

“Sexo” não é o termo mais buscado na
internet. Se você perguntar ao Google sobre “sexo”, ele irá oferecer algo em
torno de 2,2 bilhões de resultados: o suficiente para derrotar muitos outros termos, mas, o fator crítico aqui, não é a quantidade de material disponível, mas quão acessível ele está. Na internet estamos sempre a uma busca e um clique de distância da pornografia.

O que antes era um tabu – e exigia uma visita a um vendedor especializado, com restrição de acesso por idade – ganhou acesso livre a tudo. Se você quiser pornografia, pode ter de forma instantânea e anônima, livre de custos monetários e sentimentais. Neste
contexto, a pornografia é praticamente igual a qualquer outra coisa no mundo
virtual. É apenas mais um serviço. Como qualquer outro produto da indústria do entretenimento, a pornografia está mais barata, mais obscena e mais incapaz de melhorar sua qualidade – tornando ainda mais nebulosas as fronteiras entre consumo, participação, encenação e realidade.

Com a internet, você não está apenas a uma mera busca ou clique de distância da maioria das coisas que podemos imaginar; você também nunca está sozinho. Não importa o quão bizarro, inusitado, eclético ou até mesmo ilegal seja o seu gosto – em termos de sexo ou qualquer outra coisa – sempre existirão  outros com os mesmos gostos do outro lado, com conselhos, fóruns, sistemas de encontro e discretos protocolos de segurança, quando necessário.

Diga ao mundo o que você quer, e se houver alguém disposto a dar o que você deseja, é bem provável que a tecnologia irá conectá-los. Isso provavelmente o levará a alguns sites, que através de consulta aos classificados, pode-se encontrar tudo categorizado e filtrado de forma pragmática e evidente, deixando praticamente tudo o que é imaginável à sua disposição. Esses sites e redes sociais oferecem dicas de segurança pessoal, conselhos para evitar golpes e fraudes, informação aos pais sobre como obter programas de controle de acesso, e possuem uma elaborada política antiprostituição. Tirando isso, no entanto, você está simplesmente livre para ter o que quiser. Clique na categoria que mais se adequa ao seu gosto e você será direcionado para uma lista, em ordem cronológica, de pessoas e aquilo que estão dispostas a oferecer.

Uma pesquisa um pouco mais elaborada, mostra que alguns sites de relacionamentos e encontros ocasionais para sexo, chegam a recebe mais de mil novos anúncios por dia. Praticamente nenhum deles exige nada além de um clique e um e-mail.

Como qualquer outra coisa numa era de onipresença tecnológica, sexo digital não significa apenas olhar: significa buscar, se conectar e descobrir que você não está sozinho – ou que a
solidão não precisa mais ser um fardo se você tiver a internet; e significa, também, obter exatamente o que se quer, na hora em que se deseja. Você procura um relacionamento sem compromisso, sem chance de acabar com o seu casamento e com discrição garantida? Basta procurar e certamente encontrará alguém e até dicas para evitar que você seja descoberto.

A Internet nasceu com o nobre propósito de levar informação e conhecimento às pessoas – isso foi desvirtuado e assim como no mundo real, o mundo virtual expos o pior de nós mesmos como crimes, roubos, drogas, prostituição, pornografia e outros. As questões que isso desperta, no entanto, seguem caminhos distintos.

Com a questão da pornografia, há uma série de temáticas morais, além da violência sexual, abuso de vulneráveis, negociação de substâncias ilícitas; e o triplice fator de combinação digital: distância, anonimato e privacidade pode ser algo muito preocupante. Abuso sexual, tráfico de drogas e formas ilegais de pornografia são apenas um aspecto do lado sombrio das conexões digitais, portanto precisa haver tanto leis quanto fiscalização para impedi-las – algo que a internet por si só, não é capar de resolver.

A pornografia, quando explorada pela tela do computador, embrutece ainda mais a sensibilidade humana”.

Em texto publicado no jornal The New Atlantis, o filósofo britânico Roger Scruton descreveu este ato de “se esconder atrás da tela” como

um processo de alienação por meio do qual as pessoas aprendem (…) a
transformar suas vidas em brinquedos sobre os quais pensam possuir total controle”.

Scruton faz um alerta sobre como a nossa liberdade, ética e moral estão sendo afetadas quando nos excluímos do mundo das relações humanas reais, com seus riscos, conflitos e responsabilidades, para as relações do mundo virtual.

O conforto, o comodismo e a recompensa imediata (imediatismo) da era digital suprem nossos objetivos mais básicos, inclusive o sexo casual, onde nudez e promiscuidade tornaram-se comum em um serviço projetado perfeitamente para exibicionistas e voyeurs.

Especialistas chegaram a dizer que, no começo da Internet pública, que conforme ela se tornasse cada vez mais popular e madura, o sexo – que havia se espalhado como fogo descontrolado em uma paisagem digital virgem – perderia seu apelo, em grande parte devido à falta de potencial para a sofisticação. No que diz respeito a sites e serviços digitais, essa tese se provou verdadeira.

Estatísticas de monitoramento de tráfego de dados, mostram que sexo e pornografia são menos interessantes para o mundo do que Amazon, Wikipédia e dezenas de outros serviços, que vão de sites de busca até redes sociais. Todos, em posição muito mais privilegiada, entre os principais sites do mundo, do que qualquer serviço sexual ou de pornografia.

De forma similar, se você usar as análises do Google Trends para estimar o interesse global de buscas por sexo e pornografia, vai descobrir que esses termos superam muitas outras coisas, desde livros até música e filmes – mas, por outro lado, são derrotados pelas buscas de termos como “Google”, “Facebook”, “YouTube” e “Spotfy”, entre outros.

Isso ocorre, em parte, porque um grande volume de pornografia e conteúdo ilícito migrou dos canais principais da internet para redes privadas, grupos dentro de redes sociais e aplicativos de mensagem instantâneas, estando hoje, mais discretas, porém muito mais direcionados à aqueles que desejam consumir esse tipo de material/produto.

Um ponto importante, que não pode deixar de ser mencionado, são os e-mails. Checando minha caixa de spam e as muitas mensagens não solicitadas que chegam ao longo da semana, tudo é bastante típico: promessas de potência sexual, produtos eletrônicos com desconto, cartões de crédito, remédios para tudo que se possa imaginar, empréstimos, ofertas de relacionamentos sexuais e…
“um e-mail da mina esposa”. Minha conta de e-mail e de todas pessoas do mundo se tornou um receptáculo passivo de todo lixo e absurdo do mundo – e assim os spams jorram, para mim e para qualquer outra pessoa, em uma quantidade que responde por aproximadamente oitenta por cento de todo o tráfego de e-mails do mundo. Esse é exatamente o bombardeio prenunciado pelos profetas do apocalipse no início da era digital.

Em um vídeo do TED, o escritor científico Steve Johnson fez um esboço dos motivos pelos quais ele acredita que a internet se assemelha a uma cidade, em muitas aspectos.

construída por muitas pessoas, sobre a qual ninguém tem completo controle, intricadamente interconectada e ao mesmo tempo funcionando como diversas partes independentes”.

O esboço de Johnson oferece um exemplo de estrutura que serve para policiarmos nosso novo mundo de forma eficiente: um novo mundo que não pode ser controlado (ainda) nem por um poder central, nem por qualquer entidade educacional, e que para prosperar depende do bom funcionamento de diversas formas entrelaçadas de comunidade.

A polícia, na forma como conhecemos hoje – uma agência de defesa da lei,
paga pelo Estado, mas que age de acordo com os interesses públicos e em
harmonia com a população de uma forma geral –, surgiu nos séculos XVI e
XVII, diante dos desafios que a expansão das cidades representava para a lei, a saúde e o bem-estar públicos. Uma força policial legítima e eficaz deveria trabalhar junto às comunidades locais, e era formada em parte por integrantes dessa comunidade.

Como argumentado anteriormente, alguns dos maiores perigos do lado sombrio do comportamento humano na internet é o seu potencial para incentivar o abuso de minorias, ao mesmo tempo que provoca o embrutecimento da maioria. Isso
se aplica não apenas ao sexo e à sexualidade, mas a todos os comportamentos que visam reduzir, explorar e humilhar pessoas para obter algum tipo de prazer ou benefício. Para defender nós mesmos e nossa sociedade desses males, os melhores modelos digitais mimetizam o policiamento efetivo do espaço urbano, mesclando o éthos de uma comunidade cujos membros zelam uns pelos outros com critérios externos impostos de dentro.

Já nos idos de 2007, em resposta aos problemas de abuso e desonestidade que estavam prejudicando a experiência de muitos membros da
comunidade digital ao redor do mundo, o editor, blogueiro e principal responsável pelo movimento de software livre Tim O’Reilly propôs um “código de conduta para blogueiros”, dividido em sete pontos inspirados, de certa forma, em comparações com o espaço urbano, como as que foram feitas por Johnson. Os seis primeiros pontos do código tratavam da responsabilidade que blogueiros deveriam ter pelo conteúdo à disposição em seus sites, da questão do
anonimato, e de como combater potenciais fontes de abuso e ofensa. O sétimo ponto elaborado por O’Reilly, no entanto, era mais genérico, e é uma das sínteses mais perfeitas do que deve ser nosso comportamento virtual:

Nunca diga na internet aquilo que você não diria pessoalmente.”

O’Reilly estava oferecendo as bases de um princípio regulador da civilidade
nas interações digitais, e também para a civilidade em seu sentido etimológico
mais estrito: como se comportar corretamente como um cidadão, que tem que conviver em extrema proximidade com outros.

“Acredito que a civilidade é contagiosa, da mesma forma que a incivilidade. Se esta for tolerada, torna-se cada vez pior. Não existe apenas uma comunidade blogueira, assim como não existe apenas uma comunidade em uma cidade”.

A ideia de lidar com as pessoas como se elas estivessem pessoalmente diante de você é bastante poderosa. Uma forma de coisificação tão maligna quanto a pornografia é o chamado cyber-bullying, que pode ir de uma simples ofensa verbal até uma extensa perseguição através de sites e serviços, do trabalho e do lazer.

Em seu livro Alone Together [Sozinhos juntos], a psicóloga norte-americana e professora do MIT Sherry Turkle traça um quadro do grau em que a vida de alguns jovens é afetada por esses comportamentos. Um de seus entrevistados, um jovem estudante, contou que digitalizava fotos de revistas para montar perfis falsos, os quais usava para empreender discussões extremamente críticas sobre ele mesmo nas redes sociais. Depois, ele esperava para ver quem, entre os seus contatos, “tinha odiado seus comentários” – hipótese comum e muito possível de ser concretizada dentro da subcultura extremamente ansiosa e insultante em que os jovens vivem, na qual o ostracismo digital é uma espécie de morte social. A despersonalização, no caso deste estudante, se vale da exploração da liberdade e do irrealismo digitais para esvaziar de sentido os valores centrais de uma vida: identidade social, capacidade de se relacionar de modo gentil, oportunidades para expressão individual sincera e compartilhamento de experiências.

Costumo dizer às pessoas que, a tecnologia é uma benção ou uma maldição em nossas vidas. Tudo depende de como a usamos. Hoje
em dia, todos nós somos capazes de satisfazer a maior parte de nossos instintos mais primitivos, de acordo com a nossa vontade, dentro do reino digital – e a maior parte de nós o fará, em algum momento. Porém, ao mesmo tempo, também precisamos ser mais do que meros objetos uns para os outros;
precisamos encontrar espaços virtuais e reais que nos aceitem “em pessoa”,
como parte de um grupo ou comunidade do qual se esperava civilidade. O anonimato não é um mal implacável, da mesma forma que saber o nome de uma pessoa não é garantia de seu caráter. O que devemos combater, propriamente, é a espécie de narcisismo que enxerga todas as relações na internet – sejam elas anônimas, dentro de um ambiente virtual ou entre amigos, no Facebook – como algo que não serve para nada além da satisfação dos nossos próprios desejos. Isso é, acima de tudo, uma questão sobre a força e a integridade de nossas comunidades, e sobre a capacidade que elas têm de associar um policiamento eficaz com o respeito por valores comuns: sobre a capacidade de autorregulação, sem deixar de recorrer à autoridade quando necessário. Em ambos os casos, é preciso estabelecer diretrizes. Seja na internet ou pessoalmente, devemos ser tão humanos, quanto os outros nos permitem ser.

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