A política e o meio digital


O que os movimentos do Tea Party, o Pirate Party, o anticopyright, os eventos da Primavera Árabe e os protestos globais do tipo Occupy e vem pra rua têm em comum?

Resposta: existem poucas semelhanças ideológicas entre eles. Porém, todos representam uma nova forma de política que surgiu ao longo das últimas décadas: uma política baseada na disseminação viral de ideais e ideologias, que na formas de ações políticas guiadas, foram além das operações partidárias tradicionais. Para participar, tudo o que o indivíduo precisou fazer foi: sentir-se motivado pelas bases ideológicas, aceitar os critérios digitais e convencionais para organizar as ações e lançar-se sob a bandeira do movimento. Esses movimentos, basicamente tinham líderes, mas não existiam hierarquia de comando. Costuma ser mais claro entender o que o movimento odeia e do que se opõe, do que as propostas de mudança que apresenta ao mundo. E, a menos que as autoridades estejam dispostos a pará-los, aplicando a força bruta – como foi o caso em algumas partes do Oriente Médio –, as consequências podem ser transformadoras e até mesmo revolucionárias.

Em uma metáfora do escritor e filósofo britânico Ren Reynolds, essas tendências políticas são como ondas em um rio – ao passo que a substância que lhes permite existir, o curso d’água, é a nova política de uma era digitalmente interconectada. Conforme estamos cada vez mais conectados digitalmente, passamos a abordar a política de novas formas.

Filiações a partidos oficiais e assembleias de votação fracassaram significativamente nas democracias mais desenvolvidas ao longo dos últimos cinquenta anos. Na maioria das pesquisas, a confiança declarada nos políticos está próxima dos níveis mais baixos de todos os tempos, no mundo todo, enquanto os tradicionais responsáveis pelo debate político – jornais impressos e canais de televisão – estão apenas um pouco melhor que isso, no que tange ao gosto e ao interesse públicos. Dê uma olhada nas manchetes dos jornais, e você vai entender.

Ações e protestos organizados em vários países possuem cobertura tanto da mídia tradicional quanto das novas mídias, transmitidos simultaneamente para o mundo. Prega-se imaginar uma alternativa sociopolítica e econômica que ofereça maiores possibilidades de igualdade. Isso denota uma sinceridade muitas vezes desprezada; apesar disso, a paixão e o volume de conversas, debates e experiências práticas, oferecem uma opção muito mais séria em comparação à escassez de intervenções populares, positivas, no que diz respeito à maior parte das questões do cenário político.

Por combinar velhas técnicas com as novas tecnologias, por tentar direcionar o planeta para um caminho mais democrático, apesar de algumas vezes mais perigoso, esses tipos diferentes de experiência foram fundamentalmente alteradas pelas novidades tecnológicas. Para os cidadãos do século XXI, capazes tanto de ter acesso quanto de participar de grupos de muitos milhares e até mesmo milhões de pessoas, fazer “política” não é propriamente uma seleção de atos discretos em meio à série de altos e baixos da vida. Se estamos ou não cientes de nossa participação, é algo bem distante da questão: a ignorância tem sua carga política, da mesma forma que o ativismo. Da mesma forma que diversas operações, desde a cobrança de impostos de uma cidade até eleições e dados pessoais, migram continuamente para as redes digitais globais, a relevância política tanto da ação quanto da inércia também cresce em ritmo constante.

Desde a abertura da internet para uso comercial e a criação da rede, em 1989, as mídias digitais foram aos poucos deixando de, simplesmente, informar sobre a política de nosso tempo, para ajudar a criá-la, de forma efetiva. Hoje em dia, desde a política dos protestos globais ao impacto do Wikileaks e do coletivo global de hackers Anonymous, as antigas balanças de poder estão deixando as mãos das minorias que historicamente monopolizaram o conhecimento e as ferramentas organizacionais, com impressionante velocidade. Contudo, a sedutora ideia de que o acesso à internet pode ser automaticamente equiparado à liberdade democrática não faz jus à complexidade da situação. Para citar apenas a exceção mais óbvia, a China apresenta ao mesmo tempo a maior população da internet – mais de 700 milhões de usuários, em 2020 – e o mais sofisticado regime de monitoramento, censura e espionagem da rede. As ferramentas digitais podem colaborar com muitas liberdades, mas suas histórias estão longe de ser simples, e muito distantes da possibilidade de culminar em revolução ou em reformas profundas.

Entre tudo isso, talvez o maior perigo não seja a apatia, mas a inocência: a
incapacidade de perceber claramente os potenciais e os obstáculos das ferramentas ao nosso dispor. Veja, por exemplo, a privacidade e a segurança online. O simples fato de que cada um de nós está deixando hoje uma série de pegadas digitais que serão visíveis por toda a eternidade implica importantes questões legais e éticas – cuja abordagem está bastante atrasada na maioria dos países.

O que deveria significar e o que realmente significa ‘privacidade on-line’ – e que parcela de controle deveríamos ser capazes de exercer sobre informações de todos os tipos, depois que as entregamos ao mundo?

Muitos legisladores, assim como cidadãos comuns, não possuem bases suficientes para elaborar uma resposta. A noção de que temos “direitos” dentro do espaço virtual, como consumidores e como cidadãos, ainda é tratada precariamente pela lei, atrasada até mesmo diante das formas mais conhecidas de criminalidade; e aplicar modelos legislativos já existentes aos espaços transnacionais criados pela internet é extremamente perigoso, sobretudo quando se trata da propriedade e da segurança de bens cuja realidade física se resume a simples partículas em uma nuvem de dados eletrônica. Qualquer legislação abrangente demandará muitos anos – ou até mesmo décadas – para ficar pronta. Nesse meio-tempo, a responsabilidade por negociar as bases pelas quais informações pessoais podem ser mantidas de forma segura, em quantidades cada vez maiores, recai inevitavelmente sobre usuários comuns e interesses corporativos. Além disso, precisamos levar em conta os critérios pelos quais nossas ações mais amplas nos espaços digitais, desde mensagens enviadas em redes sociais até e-mails e uploads, serão julgadas e consideradas legais. A única coisa que está clara é quão politicamente reais essas questões se tornaram:

  • Constantemente, atos de vandalismo são previamente organizados através de mensagens no Facebook, levando pânico e terror em comunidades.
  • Boatos sobre ondas de violência deixam as pessoas com receio de sair de casa.

Está claro que precisamos evoluir rapidamente no que diz respeito ao debate político na internet – e igualmente no que diz respeito a determinar que questões são verdadeiramente importantes. Como o escritor Evgeny Morozov observa em seu livro The Net Delusion [A ilusão da rede].

os visionários da tecnologia, com os quais contamos para nos guiar em direção a um futuro digital melhor, podem acabar resolvendo com perfeição o problema errado. (…) Como o único martelo que esses visionários possuem é a internet, não surpreende que qualquer problema político ou social seja representado como um prego virtual”.

A questão colocada por Morozov é muito importante: se existe alguma esperança, ela está no exame da tecnologia não isoladamente, mas sim como parte das esferas sociais e culturais específicas nas quais ela opera. Quando se trata do impacto direto das novas tecnologias na política em si, primeiro devemos perguntar o que são, exatamente, os novos modos de ação política concebidos pelas redes digitais – e que modos tradicionais estão sendo facilitados em um novo grau, ou se tornando cada vez mais irrelevantes.

Aqui surgem três fatores cruciais:

1. a capacidade dos indivíduos em perceber o que está acontecendo em torno deles e no que eles acreditam;

2. a facilidade com que essas impressões podem ser compartilhadas e transmitidas;

3. e a consequente facilidade em organizar rapidamente formas massivas de ação, que podem elas
mesmas ser percebidas e comunicadas.

Esse foi, essencialmente, o padrão de atividade que definiu os primeiros protestos da Primavera Árabe na Tunísia e no Egito – um padrão caracterizado não tanto pelo caráter moral irrepreensível, mas pelo ineditismo e pela eficácia em regiões há muito tempo controladas de forma extremamente rígida. Contudo, mesmo que essas novas tecnologias e tendências favoreçam os cidadãos, em detrimento das autoridades centrais, como podemos apontar os “pregos virtuais”, para usar o termo de Morozov, que representam um simples pensamento positivo, e onde os aparatos governamentais e os esforços individuais podem ser melhor empregados?

Um dos mais importantes pensadores globais nesse campo é o acadêmico
norte-americano Tim Wu. A história tradicional da mídia, observa Wu em seu livro The Master Switch [O disjuntor], lançado em 2010: no começo do século XX, o surgimento do rádio alimentou, nos Estados Unidos e por todo o mundo, a esperança de que essa tecnologia iria nos levar a uma era de participação democrática sem precedentes. Porém, o que de fato ocorreu entre as décadas de 1920 e 1930 foi a transformação do rádio, de uma “mídia amplamente difundida”, em um “grande negócio, dominado por um cartel”: um encerramento econômico de possibilidades, que contribui mais do que qualquer programa de governo para restringir a liberdade de expressão possível nesta mídia em ascensão.

No que diz respeito à internet, Wu defende que ocorre algo diferente do que aconteceu com a mídia impressa, com a televisão e o rádio. A natureza peculiar da internet – cuja “prioridade era o desenvolvimento humano mais do que o sistema em si” – denota que o que foi criado era “uma rede descentralizada, e que assim permaneceria”. Contudo, “comando e controle políticos da internet” não são impossíveis – são apenas muito mais difíceis de executar do que em outras mídias.

O Big Brother [Grande Irmão] está observando você – e sua conta no Facebook? Regimes autoritários, se estiverem cientes de suas ações, podem sem dúvida reunir força suficiente para rechaçar a maior parte dos protestos virtuais, ou das oportunidades para que eles surjam. Da mesma forma, leis malconcebidas ou práticas maliciosas de grandes empresas podem desvirtuar a maior parte dos pontos positivos que a internet apresenta hoje; ou encaminhar consumidores que buscam segurança e conveniência diretamente para as mãos de censores e monopólios. Tudo depende de o quanto nós – e aqueles que elegemos, ou a quem pagamos pelo privilégio do acesso digital – estamos alertas para tais possibilidades.

“A internet”, conclui Wu, não é simplesmente o fantasma que costumamos imaginar, mas sim uma entidade física concreta, que pode ser dobrada ou quebrada. Apesar de ter sido projetada para conectar todos os usuários entre si em um mesmo nível, ela sempre foi dependente de um número limitado de conexões físicas, seja por meio de cabos ou de ondas, e de interruptores, operados por um número limitado de empresas.

Quanto mais cedo tomamos conhecimento das reais consequências desse fato, melhor. As estruturas abertas que sustentam a cultura digital frequentemente interagem de forma não muito fácil com sistemas políticos e comerciais preexistentes – e os melhores resultados, tanto para os indivíduos como para o mundo, só poderão surgir a partir de uma negociação em que todos os agentes
estejam dispostos a aparar suas arestas com o mesmo grau de força e de
sabedoria. Apesar de mais significativos em termos globais, pode ser que os frutos desse processo sejam colhidos em maior parte, não pelos mais ricos ou pela elite dominante, mas por aqueles povos e nações que, historicamente, não estiveram à frente em termos de desenvolvimento. Como os exemplos do Oriente Médio e do norte da África nos mostram, a maior parte da aplicação mais apaixonada das possibilidades desta era digital veio daqueles que não foram seus pioneiros, mas que souberam aproveitar melhor as oportunidades oferecida por este salto tecnológico.

Veja o caso da Índia: um país onde não existe serviço de seguridade social, como em alguns outros países. Apenas 33 milhões de pessoas (de um total de 1,2 bilhão) pagam imposto de renda, e apenas 60 milhões possuem passaporte. Como a revista The New Yorker destacou,

centenas de milhões de indianos são
praticamente invisíveis para o Estado (…), de forma que não conseguem abrir
contas bancárias nem comprar chips de telefone celular, e não podem usufruir dos serviços públicos que lhes são devidos”.

Isso é uma realidade que o governo indiano vem tentando mudar por meio de uma iniciativa digital de grandes proporções, que visa atribuir a cada indivíduo no país um número único, de 12 dígitos, selecionado aleatoriamente, associado a dados biométricos: uma fotografia e impressões digitais e oculares. No comando dessa iniciativa está Nandan Nilekani: fundador da empresa indiana de software Infosys, que hoje vale aproximadamente 30 bilhões de dólares. A iniciativa de Nilekani mostrou-se controversa, do ponto de vista da privacidade. No entanto, seu sistema começado a processar os dados de 400 mil pessoas por dia, em centros de cadastramento espalhados por todo o país, com projetos para aumentar esse fluxo para mais de um milhão de pessoas por dia em três anos. Por meio desse processo, Nilekani está contribuindo para criar a infraestrutura de uma forma inteiramente nova de relacionamento entre o Estado e centenas de milhões de indianos – baseada não em milagres revolucionários, mas sim no princípio básico contido no ato de oferecer uma identidade, e na responsabilidade social que surge a partir disso.

Observando as formas pelas quais as tecnologias digitais estão começando a ser utilizadas ao redor dos países em desenvolvimento, é possível perceber que o projeto de Nilekani se ajusta a um padrão reproduzido de muitas e variadas formas: iniciativas simples e de larga escala, com baixos requisitos técnicos, e que ajudam a criar maneiras completamente inéditas de participação e de acesso para muitos milhares de pessoas. Sistemas bancários baseados em contas de telefone celular estão se tornando cada vez mais corriqueiros nas Américas do Sul e Central, assim como formas de pagamento de impostos e até mesmo de votação por meio de celulares. A agricultura e a negociação de produtos estão sendo radicalmente alteradas pela simples eficiência que o acesso a preços e a informações sobre o mercado, via telefone celular, oferece. Para dar apenas um exemplo, a telefonia celular em Bangladesh – país onde até o ano de 1999 não havia nenhum serviço desse tipo – alcançou, em 2010, a marca de cem por cento de penetração “digital”, o que significa que praticamente nenhum habitante do país vive sem acesso à comunicação móvel, seja por meio de familiares, amigos ou da comunidade. Enquanto isso, na África, existem hoje mais de 600 milhões de usuários de telefonia celular: número superior ao dos Estados Unidos e da Europa. A tecnologia digital é ágil e ajustada a seus objetivos em sua combinação de poder e flexibilidade, e em sua facilidade de integração até mesmo às condições e necessidades de vida mais básicas. Isso é o exato oposto do luxo, da autoindulgência e da alienação comumente associados ao impacto político das novas tecnologias no mundo desenvolvido: um fenômeno cuja política está fundamentada nas camadas mais baixas da sociedade, e não imposta pelas elites, o que representa o aspecto mais positivo de tudo. Com a tecnologia ocupando um papel cada vez mais central no rompimento de noções estabelecidas quanto ao que é ou não “político”, não há nada de ingênuo em acreditar que novas formas de participação e integração política possam surgir em paralelo a novas formas de conexão e identidade. Além disso, as estruturas abertas que sustentam boa parte dessa tecnologia representam um legado moderno e único, que devemos construir e passar para as gerações
seguintes. Assim como a arena política tradicional, os espaços digitais nos quais essas novas formas de contrato político e social estão sendo forjadas são indiscutivelmente sujeitos aos abalos provocados por conflitos, negociações e concessões.

Para prosperarmos juntos, precisamos estar preparados para lutar por nossas liberdades dentro desses espaços: liberdade de expressão e protesto, acesso igual e irrestrito, privacidade individual e direito à propriedade de informação. Em todas essas áreas existe uma necessidade urgente por legislação e regulamentação apropriadas. Contudo, no fim das contas, as forças que estão moldando nosso futuro político são ao mesmo tempo fluidas e altamente desenvolvidas: distribuídas de forma inédita por comunidades, movimentos e interesses interligados. Soluções parciais e centralizadas não vão nos proteger nem nos dar segurança.

Novas negociações terão de ser empreendidas, e novas formas de inclusão, mais abrangentes, terão de ser exploradas: mas isso só irá ocorrer se todos os lados forem capazes de reunir sabedoria, ambição e confiança suficientes na capacidade coletiva de ação.

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